sábado, 17 de março de 2012

O sonho


           Quando nada mais importa, descobrimos o valor que damos a cada coisa, o sentido exato daquela caixa de música ou da lembrança mais remota da infância, que teima em voltar cada vez mais nítida. As lembranças trazem uma carga de sentimentos muito intensos e a saudade quase sempre é inevitável. Restava-me pouco tempo, mas o suficiente para assistir ao filme da minha vida passando diante dos meus olhos. Eu conseguia lembrar cada detalhe, de cada vez que nos sentamos no sofá velho de sua casa, que ficava em uma cidadezinha no interior de Santa Catarina e comemos granola pura vendo um filme de suspense. Eca! Como conseguíamos comer aquilo?
       Lembro de quando brincávamos de pegador na chuva em seu jardim e com sua força ele me pegava no colo e me beijava. Era jardineiro. Ele me levava aos casamentos em que eu tocava piano para ganhar o meu dinheiro e no caminho sempre cantávamos com o som no máximo, super desafinados. Era tão engraçado. Era jardineiro. A última viagem que fizemos nos rendeu belas fotos para o álbum: um belo litoral azul, um labirinto de montanhas e um pôr-do-sol indescritível. Praias, cachoeiras e ar puro, era tudo que queríamos além da companhia um do outro é claro. Aquela viagem teve o custo de um ano de economias, mas eu estava certa de que não iria me arrepender, pois foram duas semanas que renderam lembranças para uma vida inteira. Era jardineiro. Era inteligente também. Gostava de filmes lógicos e sua estante de DVDs estava lotada de suspense. Sempre cuidava da minha alimentação, com frutas, queijos, leite desnatado, verduras e iogurtes. Eu não tinha dúvidas de que o amava de todas as formas possíveis e devido a essa certeza indubitável, eu não conseguia pensar em ficar sem ele. Não por um ou dois meses, mas pelo resto da vida. E naquela manhã aconteceriam coisas que me levariam ao fim.
          Na mesa do café, inclinei-me para lhe dar um beijo e ele retribuiu automaticamente, mas de repente levantou-se rápido da mesa e correu em direção à porta, saindo sem dizer nada. Eu mal podia acompanhá-lo, gritava, mas ele parecia não me escutar e eu não entendia os seus motivos. Só parou quando chegou a grande cachoeira. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo e vivendo. Olhou fixamente nos meus olhos, já cheios de lágrimas e sem dizer nada pulou. Não hesitei por um segundo sequer, virei de costas para a grande queda, fechei os olhos e pulei também. Pensei que a queda ia demorar devido a altura, mas em menos de dez segundos eu já estava parada e firme novamente. Tive medo de abrir os olhos e não encontrá-lo, ver médicos fazendo uma cirurgia de emergência em meu corpo. Eu não ia resistir. Como as coisas são engraçadas. Quando abri os olhos vagarosamente, foi como despertar de um sono profundo, eu estava firme em seus braços sendo acariciada por suas mãos macias. Ele me acalmava e parecia não fazer idéia do meu desespero. A vasilha estava vazia e a granola estava espalhada pelo tapete vermelho em que estávamos sentados. Foi tudo um sonho.
          Talvez jardineiro de flores ele não fosse, mas com certeza era jardineiro da vida, pois conseguiu plantar e fazer florescer a mais bela semente do amor em meu coração.